Quero-o

Imagino o beijo,
O toque dos lábios envergonhados.
A intensidade da tensão do jogo da tua mão no meu cabelo.

(Quero dizer-te o meu mundo,
Os arrepios que me dás,
Os ensaios de viagem ao imaginar-te por perto.

Quero ouvir-te os sentidos,
As danças à beira mar,
As forças de seda de ter-te por perto.)

O leve apartar dos lábios,
A certeza de que soube a pouco,
A cumplicidade do sorriso.

Quero-o,
Sei-o porque o quero.


Diz-me:
Quanto do teu sorriso faz parte do meu destino? 

Do Que Me Foste


À Guida,
           Com todo o meu reconhecimento.


Desci as escadas escuras. Não, não me lembro de as ter descido. Sei que as percorri porque me vi ali sentada. Não longe, sei que há crianças: oiço-as. Uma aproxima-se de mansinho e senta-se no meu colo. Outra, desafia-me. Foram as únicas crianças que consegui ver. Imadiatamente abaixo, do meu lado direito, abre-se uma porta e as crianças voltam para a sala. A porta volta a fechar-se.
Na escuridão, a única luz que vislumbro vem do andar de baixo. Devagar, vou descendo até ao fundo das escadas. Paro. Do meu lado direito, existe uma sala. A porta está fechada. Do lado esquerdo, em frente, tem um salão iluminado pelo sol; e, do lado direito, de quem se dirige ao salão, tem outra sala – a porta está aberta e a luz acesa. Instintivamente, e com alguma cautela, caminho lentamente até ao salão, não sem antes espreitar pela porta aberta da sala que está com a luz acesa. À medida que me aproximo do salão, o som das gargalhadas das crianças vai-se tornando cada vez mais audível: também há crianças no salão. Encosto-me à entrada, sem que me vejam, e observo-as. Atravesso aquele espaço com o olhar, encontro-te. Estás a falar com outra mulher. O meu coração começa a acelerar. És tu. Depois de tantos anos: és tu.

(Lembro-me, como se fosse hoje, dos momentos que passamos juntas. O mimo, o colo, os abraços e os beijinhos que me davas. Ainda te lembras da minha brincadeira preferida? Eu ainda me lembro do sorriso que largavas sempre que me encorajavas a brincar. Dá para acreditar que já passaram tantos anos?)

Sinto um certo saudosismo, apetece-me ir falar contigo mas sei que não me vai reconhecer. É melhor ir-me embora enquanto há tempo: não quero que me digas que não te recordas de mim – não tu.
Já no final do corredor, mesmo antes de começar a subir as escadas, (curiosa como sou) aproximo-me da porta que está fechada. É uma porta, pequena e desenhada em madeira, digna de um conto de fadas. Do lado esquerdo da porta, à altura do ombro, tem uma placa, também ela trabalhada em madeira, onde inscrito posso ler o meu nome: Cátia. Não consigo conter a emoção e começo a chorar, enquanto, com a cabeça baixa, penso repetidamente: guardaste uma sala para mim. Mais calma, momentos depois, volto a olhar para a placa mas as letras desapareceram como por magia. Para me certificar de que a sala teria sido mesmo guardada para mim, abro a porta e entro. Olho em volta e vejo-me pequenina outra vez. Está tudo nos mesmos lugares. As minhas coisas estão ali. Aquela sala foi pensada para mim, e foste tu que a guardaste. Enquanto ando pela sala, mesmo sem querer, acabo por fazer barulho. Tu, do outro lado do corredor, dás-te conta de que alguém lá entrou e aproximas-te. Dou-me conta de que vens ao meu encontro. Não quero que te zangues comigo. Não entras. Ficas parada a uma pequena distância da porta, enquanto espreitas para dentro da sala. Sem outra alternativa, saio. Tu vês-me. Vejo-te no coração que me reconheces de imediato. Com as lágrimas que me escorrem pela cara, corro em direção ao teu abraço. Abraças-me como antes, como sempre.
  
 Acordei. Feliz. Reencontrei a minha mãe do coração: reencontrei a minha educadora.

Braga Vista do Céu


Estava tudo parado. (Éramos só eu e ela.) Uma vista que nunca antes vira. E ali estava ela, diante de mim, pintada de cores turvas: cores de outono em primavera. Estava tudo parado.
Fitávamo-nos como se nos conhecêssemos de desde sempre. (Éramos só eu e ela.) Não partilhámos nem uma só palavra mas era como se nada tivesse sido deixado por dizer – sim, entre nós não havia nem o mais pequenino segredo.
Ali estávamos nós, como que um quadro que havia sido pintado por Deus. Pintado de cores turvas: cores de outono em primavera. Cores que traçavam linhas perfeitas. Um quadro onde até o mais pequeno pormenor estava pintado na perfeição. Éramos perfeitas: eu para ela e ela para mim.
Após uns (longos) minutos em silêncio, dei-me conta de que tudo o que antes julgava estar parado, na realidade, se movia. Movia-se a uma velocidade alucinante: estávamos a ser engolidas à velocidade da luz. Então, pedi que tudo parasse, mas por mais que pedisse nada voltava a ser como antes. A realidade estava de volta – uma realidade que, por vezes, pode ser tão cruel, tão mesquinha, tão veloz.
Afinal, não era tudo que estava parado. Éramos apenas eu e ela, tudo o resto se movia: tudo o resto se movia. Movia-se a uma velocidade alucinante. As cores, que outrora eram de outono em primavera, eram agora cores de inverno em primavera. Então, antes que aquela tela fosse manchada de tons de cinza e preto, decidi partir. Parti, mas não sem antes ter olhado uma última vez para trás – olhei na esperança de que tudo tivesse voltado a ser como antes, mas não. Agora, era apenas eu e apenas ela, pintadas em quadros distintos – o dela mantinha as mesmas cores, o meu era agora uma confusão de cores de inverno em primavera. Ela estava parada. Eu, como tudo o resto, é que me movia: movia-me para cada vez mais longe.
Foi então que, num fugaz momento de reflexão, pensei: ela está parada, ela estará sempre parada. Para que nos possamos reencontrar basta que eu pare. Basta que eu volte a ser o que antes fui, para que voltemos a fazer de nós uma única paisagem: assim que voltasse a parar, a beleza voltaria, a paz perduraria. Basta que eu pare, pensei: basta que eu pare.

Haverá, para sempre, uma amizade entre nós. Nada mudará porque, sempre que eu queira parar, ela vai lá estar, intacta, com a mesma beleza de sempre. Assim, como que em jeito de despedida, disse-lhe: até um dia! (o dia em que as nossas vidas se voltarão a cruzar). 

De Restos

Desculpa,
isto é demasiado,
a vida é extremamente difícil.
Cometi muitos erros,
suaves como uma doce melodia,
que quase me envergonham.
Ser ignorada,
é mais do que sei,
só te posso dizer como é senti-lo.
Sem esperança,
e a um pé do abismo,
sinto-me abdicar dos nossos sonhos.
Não quero fazê-lo,
mas se eu parar,
Continua.
Caminha,
de cabeça levantada,
como se nunca tivesses tido um amor.

E isto é tudo o que tenho para partilhar agora: estou de saída.

Cuidado Intensivo

Vejo-te ao longe
– tu –,
Estendida ao comprido
– tu –,
Cheia de preparo
– tu –,
Mascarada,
– tu –,
Como se de um Carnaval se tratasse,

Tu,

Olhas-me de longe,
– tu –,
Alivia-te saber
Que estou estou por perto
– tu –,
Mas é por ele que perguntas
– tu –,
É nele em quem mais confias
– tu –,
É a ele a quem mais amas,

Tu,

Acalmas com um beijo meu
– tu –,
Mais ainda, com a resposta que te dou,
– tu –,
Finjo não perceber,
– tu –
Nem te dás conta
– tu –
De como me fazes sentir,

Tu,

Hoje e sempre
– tu –,
Primeiro, porque te amo
– tu –,
Depois, porque te amo
– tu –,
Até ao fim: quem mais amo és

Tu.

Admiro-te (de longe)

Nos dias em que te vejo, pela janela do meu quarto, percebo que a vida é um sonho imperfeito. Sozinha, com os olhos pregados no chão, vais em direção daquilo que me parece ser um caminho sem destino. 

(Passas de lá para cá.) 

Os traços juvenis, que carregas de um lado para o outro, não te ficam nada mal. És bonita. A roupa, o arranjo do cabelo, os lábios pintados. Tratas-te bem. 

(Passas de cá para lá.) 

Dás pequenos passos, caminhando lentamente, parece que desfilas para alguém. Os que contigo se cruzam parecem não prestar-te atenção. Perdoa-lhes: estão com pressa. 

(Passas de lá para cá.)

Levantas a cabeça. Acho que me viste. Escondo-me atrás da cortina. Não quero que me vejas. Hoje, quero que sejas a protagonista. Baixas a cabeça.

(Passas de cá para lá.)

Pergunto-me que peso é esse que te empurra o olhar para lá do chão. Pareces ter tudo o que precisas para encarar o mundo de frente. És tão diferente do que os que contigo se cruzam. 

(Passas de lá para cá.)

Não passarás mais hoje. Fecho as cortinas. Amanhã passarás de novo. Com o mesmo olhar. Com a mesma vida. Com o mesmo sonho.

De Partida Para o Fim


Aquela tinha sido a última oportunidade que me tinha sido dada até então. Ai, quem me dera não ter sido e poderia adiar aquele encontro até ao último suspiro da minha vida - sabia que era ali que queria acabar os meus dias: só não sabia que estava para tão breve. Naquele momento, em que disseram para fazer as malas, estava sozinha, de luz apagada, a ouvir uma música que, com quase toda a certeza que ainda me restava, tinha sido composta exclusivamente para acalmar a tensão que sentia dentro da cabeça. Não estava doente. Estava apaixonada. E lá, do outro lado da minha viagem, estava o amor da minha vida. Era ao lado dele, do (não único) amor da minha vida, que queria definhar – uma extinção que não se pinta de cores negras, mas antes da libertação de uma luz que é própria. Assim:
Parti: saindo.
Cheguei: entrando.
Serenei: amando.
Morri: morrendo.