As fadas também dão beijinhos?


Naquele dia, Rita dirigiu-se à cozinha, onde o seu pai preparava o jantar, e perguntou-lhe (Estou mesmo curiosa para saber.):
- Papi, as fadas, dos livros que me lês, são meninas ou meninos?
  Apanhado de surpresa, o pai da Rita não sabia o que lhe responder – também ele nunca havia pensado nesse assunto.
- Diz lá, Rita. – respondeu o pai para ganhar algum tempo.
- As fadas. Sabes, aquelas que têm nos livros que lês…
- Sim, o que têm as fadas?
- São meninas ou meninos? – repetiu a Rita, ansiosa por obter a sua resposta.
O óbvio seria responder-lhe que as fadas eram todas meninas, até porque nunca havia lido, em parte alguma, a versão masculina de fada (“O fada”? Nunca ouvi falar em tal coisa.), e, para arrumar o assunto de uma vez por todas, assim o fez:
- Rita, não estás atenta aos livros que te leio. Se estivesses atenta, terias percebido que todos os nomes das fadas são de menina.
Rita acolheu a resposta, agradeceu ao seu pai (Obrigada, pai.), e voltou para a sala, onde brincava com os seus brinquedos. De todas as brincadeiras, a que mais gostava era de brincar às casinhas. Imaginava, e imitava ao pormenor, todas as rotinas de um casal – que às vezes até tinham filhos – de gente crescida. E, nesse dia, Rita brincou, mais uma vez, às casinhas.
Enquanto brincava, Rita deu-se conta de que, se todas as fadas são meninas, nunca poderia imaginar como seria a vida das fadas (Será que as fadas têm bebés? Devem ter. Mas os bebés têm sempre um papá e uma mamã…). Pensando em algumas coisas, que a deixavam, cada vez mais, confusa, Rita decidiu ir, desta vez ao jardim, perguntar ao seu pai:
- Papi, se as fadas são só meninas, como nascem as fadas?
- Ora, de outras fadas. – respondeu o pai, sem pensar.
- Mas, papi, os bebés têm papá e mamã, e isso quer dizer que os bebés das fadas também têm que ter, não é?
Surpreendido pela perspicácia da filha, o pai de Rita não sabendo, ao certo, o que responder, lembrou-se de que seria uma boa altura para explicar à filha que existe outros tipos de família, que não a tradicional.
- Rita, todos os teus amigos da escola têm papá e mamã?
- Sim, mas a Ana e o Rodrigo vivem só com a mamã deles, porque os papás foram viver para outra casa.
- Vês – respondeu o pai –, afinal, nem todos os meninos vivem com os dois pais. E no caso das fadas é igual. As fadas vivem só com fadas, assim como os gnomos vivem só com gnomos.
- Mas assim eles não podem ter bebés, porque tu disseste que para nascer um bebé tem que haver um menino e uma menina. – disse, aborrecida.
- Sim, tens razão. Mas também já te disse que existem meninos que não têm papás, não disse?
- Sim. – respondeu, sem perceber onde o pai queria chegar.
- Então, muitas vezes, esses meninos são adotados. E, para que isso aconteça, tem que haver amor: é do amor, que se tem por todos os meninos do mundo, que nascem as fadas e os gnomos.
Rita começava agora a perceber algumas coisas. Mas havia ainda uma pergunta que lhe saltava na mente – parecia uma pipoca – e, sem querer, largou:
- Então, e as fadas dão beijinhos a outras fadas? – disse, de modo desafiante.
- Claro que sim. Se elas gostarem uma da outra, como eu gosto de ti e da mamã, podem dar beijinhos, e dar abraços, e fazer cócegas, e tudo, e tudo, e tudo. – respondeu o pai enquanto a enchia de cócegas, e terminando com um grande abraço.
Satisfeita, com as respostas – e com o abraço –, a Rita, enquanto se dirigia para a sala, voltou-se e disse:
- Papi: gosto muito de ti.
Embevecido com a ternura da sua filha, o pai de Rita, pensando em tudo o que lhe havia dito antes, respondeu:
- Também gosto muito de ti, fadinha.
De volta à sala, Rita, brincava agora às casinhas das fadas, onde uma fada gostava muito de outra fada e, por isso, viviam juntas.

Em Ti

Foi no sonho: senti-me crescer como nunca antes. Talvez por ser o sonho o que de mais poderoso temos, dentro e fora. Talvez por ser o sonho, mais do que os sonhos, o que nos faz rodopiar nesta calçada – mundanamente imunda – que é a vida.
Hoje, foi encantado – por ti –, e senti-o: abracei-o. A magia por algumas horas de sono: converter-me-ia, a esta religião, sem ter que pensar mais do que uma só vez. E elevaria a alma, até ao topo da escada, para mais perto do centro do sol.
Foi na ilusão que te reencontrei, e lá moravas tu: mais frágil do que um copo de cristal, perdido no interior de um lagar de uvas, à espera de serem pisadas. Mergulhei, de corpo inteiro, na esperança de te livrar dessa sina, quase inevitável, que é o processo de fermentação.
Por ti, encarnei-te em mim: fiz-me, de ti, raiz. E sugaste-me a pouca água que me restava, enquanto me fixava em ti e te trepava o tronco.  E abracei-te. E beijei-te a face. E.

Foi um par de vezes,
Poucas demais                                                
Para quem suplica por todas.

As vezes que te supliquei,
Poucas demais
Para quem as sentiu aos pares.

Demais orgulho largado,
Demais orgulho aprisionado.

E de que vale o teu orgulho se o aprisionas? Tal como ao pássaro que dizes ser: liberta-o. Passarinho, engaiolado, que voas com medo de bater nas grades: liberta-te, mais que ao teu voo.

Voa para dentro do sonho:
Do meu,
As vezes que quiseres.

A tua gaiola,
O teu céu,
As vezes que quiseres.

O teu sonho,
No meu sonho:
Serei.

Porque é o sonho, mais do que os sonhos, que nos faz rodopiar nessa pista de dança – desumanamente vulgarizada – que é o amor. E é o amor: a porta. E é o sonho: a chave de fendas. E, se não tenho a chave, para sempre: sonharei.

Mensagem


            As palavras não me enchem a alma: sou eu que as encho, a elas. As palavras, sem a (minha) alma, são ocas, vazias: são nada. E é pela alma que te chegam as palavras que te deixo.
            Diz-se, por aí, que a alma, tal como as palavras, se vê pelos olhos. Eu, antes, tal como às palavras, vejo os olhos pela alma. E foi sempre com a alma – com essa alma com que vejo – que te vi. Vi-te porque te senti – mais dentro do que os olhos podem penetrar. E foi ao ver-te, que te escrevi, a alma.
            Deixa-me continuar a ver-te pela alma, porque o que os olhos me mostram é pouco, fraco, e miserável. Se tiver que te ver pelos olhos, esses que dizem ser o espelho da alma, então prefiro cegar.  

O Que Nunca Serei


Sou tudo o que um dia nunca d’antes fui,
Fruto de números perdidos na lotaria do tempo.
Sou tudo o que um dia nunca d’antes foi falado,
Fruto de boatos de um ser que não era.
Sou tudo o que um dia nunca d’antes me foi almejado,
Fruto de correntes que me aprisionaram a um bem-amado.
Sou tudo o que um dia nunca d’antes me foi visto,
Fruto de escada rolante de um só sentido.
A escada que me carregou nos braços desde o ontem até ao hoje,
E que, a lado algum, nunca mais me levará.
Não mais quero sonhar.
Serei poeta.
Imortalizada pela própria morte,
Irei por onde me carregarem os versos.
E se ainda assim, a lado algum, nunca me levarem,
Não deixarei de ser o que um dia nunca d’ante fui.
Porque se hoje sou tudo o que um dia nunca d’antes fui,
Amanhã serei nada do que um dia d’antes pensei vir a ser.