Instrumento

Em estreia:
A singularidade do som – vício antigo,
como um abraço pacifista,
em cumplicidade partilhada: que atmosfera.
O sentimentalismo da mentalidade estabelecida,
uma impossibilidade de frigidez moral,
em complementaridade com passado, o presente e o futuro: que raridade.
A garantia de um momento que se prolonga,
confusão (consentida) com o oceano,
para lá de todas as convenções: que proeza.
Longe da mediocridade,
essa doença de quem é desprovido do sonho,

Estaremos sempre perto: que brutalidade. 

A (In)Certeza

      Jorge e Inês iriam partir de viagem dentro de poucos dias – as malas, no canto mais afastado da porta do quarto (como se ali fossem invisíveis aos demais que lá pudessem entrar), estavam a ser cuidadosamente preparavas há mais de dois meses –, iam em busca de um destino que lhes pudesse dar o sustento que o seu país (cheio de história, boas gentes e bons costumes) não fora capaz de lhes dar: submersos em precariedade, iam à descoberta dos seus futuros. A arte de fazer malas nunca a tinham aprendido antes; bom, não naquela dimensão – tenho a certeza de que me estou a esquecer de alguma coisa; calma, não vamos para o outro lado do mundo. O que lhes ia acalmando a crescente tempestade de emoções que iam sentindo, particularmente nestes últimos dias, era a certeza de que poderiam sempre regressar às origens, no mínimo, um par de vezes por ano.
      O dia da viagem tinha finalmente chegado. À saída da porta de casa, já com as lágrimas a correrem-lhe pelo rosto, a mãe de Jorge dava-lhe todos os conselhos de boa mãe: cuida de ti, meu filho; trata bem da Inês; não te esqueças de avisar quando chegares; oh, meu filho; (…). E assim o ia repetindo, compulsivamente, até à chegada ao aeroporto.
     Inês e a sua família já haviam chegado e esperavam-nos em frente ao balcão da companhia aérea, prontos para que o casal fizesse o check-in. Chegando mais perto, Jorge deu-lhe um beijo, enquanto lhe segurava a mão com firmeza: ia correr tudo bem. Os rostos dos pais daqueles jovens transpareciam um misto de alívio, tristeza e ódio – alívio na esperança, tristeza na saudade que já sentiam, e ódio de um planeamento de futuro passado que, na prática, havia saído do seu controle (não era isto que tinham sonhado para os seus filhos).  O mar de lágrimas, grossas pingas de chuva visceral, ia-se intensificando à medida que os minutos iam passando. Parecia que aquele seria o último dia das suas vidas; não, não parecia: era mesmo o fim de duas vidas vividas naquele lugar, um fim com data de início marcada para o renascimento de outras duas.
      Já sentados dentro do avião, Inês olhava pela janela – mesmo quando faziam viagens de curta duração, Jorge fazia sempre a gentileza de lhe ceder o lugar mais perto da janela: sabia que o seu imaginário voava à mesma velocidade e à mesma altitude com que o avião percorria o seu caminho –, e indagava-se sobre o que seria isso da felicidade. Subitamente, perguntou-lhe: Jorge, achas que estamos a fazer a coisa certa? Silêncio. Ele também não sabia se aquela seria a decisão mais acertada. Fechou os olhos. Reviveu todos os momentos daquela despedida. O calor ambiente do avião contrastava com o frio na barriga que sentia. Recordou ainda o último verão, que haviam passado numa praia do norte, e pensava no quão mais fácil seria se aquela fosse apenas só mais uma viagem de verão – as viagens de verão têm a liberdade que as pessoas lhe permitem dar (ora, na pior das hipóteses, o maior dos desastres será o de ter que reestruturar todos aqueles dias, tornando-os em dias de férias citadinas, porque serão de chuva e não se está bem na praia). Sim, seria bem mais fácil – pensou. Voltando a abrir os olhos, Inês olhava-o impaciente. Tranquilamente, com um sorriso na cara, anuiu com a cabeça.
      Não, não sabia se aquela seria a escolha certa. Não podia prever o futuro. A ideia, bem viva na sua cabeça, era a de que iam em busca de algo diferente – pior ou melhor, não sabia. A única vitória que tinha assegurado até então era a de que iria viajar com o amor da sua vida. Amor da sua vida? Pois, não sabia.