A
esplanada está cheia. Sento-me numa mesa do lado de dentro. Servem-me, enquanto
levanto a cabeça – a D. Maria está a ver-me escrever – em pausa. Daqui, obviamente,
não consigo ver o quiosque. Oiço o tiritar das garrafas que se tocam em
movimento: hoje é dia de reciclagem. A D. Salete e a D. Maria falam de um padre,
com setenta anos de relação com Deus – acho que estão a ver a necrologia; os
mais velhos adoram saber quem, primeiro que eles, vai para o andar de cima:
sentem como se de mais uma batalha vencida se tratasse.
Finalmente,
abandonam uma das duas mesas da esplanada. Sento-me, acendo o cigarro e observo
o que está à minha volta. Já consigo ver o quiosque: do meu lado direito,
parado, está decorado a capas de revista e sonhos de idosos raspados pelas poucas
moedas que lhes não sobra; de caixilhos verde tropa e tecto branco, parece
ganhar uma tonalidade do espectro do invisível para todos os que, por destino,
se lhe cruzam – não vejo quem lá pára para comprar tabaco ou revista ou jornal
ou qualquer outro produto que lá se encontre à venda.
Paro
para beber. O tabaco dá-me sede: o tabaco dá-me tudo – ainda aguardo o momento
em que me dará a doença que me vai matar ou, pelo menos, assim o programei, faz
hoje uns anos (ora, não façam essa cara de choque evidente: quem fuma programa
a sua morte no dia que se apaixona por este vício de sabor amargo). Fumo um
atrás do outro – gosto de acreditar que é isso que me faz rolar a caneta, o
fumo tóxico do cigarro; por isso, quando morrer, e me lerem o blog, agradeçam
ao tabaco que fumei, digam-lhe o quão importante me foi durante vida: companheiro
de todas as horas, feliz e infeliz em horas trocadas, o melhor vício que uma
pessoa poderia ter enquanto viva.
Ao
fundo, a avenida, perpendicular a todas as ruas com que se cruza, parece estar
com pressa; para cá, e para lá, é para onde se encaminha toda a vida que
contém. Carros pretos, cinzentos e brancos. Carrinhas pretas, cinzentas e
brancas. Não passam motos. As cores verde, amarelo e vermelho são
predominantes, ainda que apareçam, apenas, de quando em vez, na alternância do
pára/arranca dos que ao circular se vêem obrigados a parar. Assim é a lei dos
que, sem se aperceberem, sobrevivem a este ritmo. Param porque os obrigam e
arrancam na esperança de uma liberdade de escolha desde logo contaminada.
Já
pararam para pensar em quantas vidas passam nesta avenida? Felizes os que
acreditam que não se encaminham para o mesmo destino. Cruzam-se sem sequer se
darem conta da distância de proximidade que os separa, sem mesmo perceberem que
o choque será inevitável.
Sem
pressa aparente estão os velhos, que se sentam nos bancos desta rua. Os sacos
de compras largados no chão fazem-me pensar no peso que carregam – não deve ser
fácil carregar tão grande volume de bens (ou males, eles lá saberão). Duas
longas histórias de vida sentadas num mesmo banco, sem nada o que dizer – não se
querem ouvir, não se querem tocar (fosse o banco maior e estariam a anos luz de
distância).
Engraçado
é percebermos a diferença de velocidades das idades que por aqui passam – ainda
que indo todas à mesma velocidade cruzeiro, da qual Deus é o capitão da maioria
(se não acreditam é porque nunca se olharam ao espelho, nem apreciaram, um só
dia, os silêncios da natureza, nem nunca tocaram a vida mais pequenina). As mais
pequeninas vidas, as humanas, que por aqui passam, vão arrastadas pelas vidas
apressadas dos que têm pressa de não parar; parar é morrer para a vida que nos corre
por fora, e se queremos ser como os outros: não paremos; não paremos se queremos
ser o que nem imaginamos não ser. E se pararmos, que seja nos semáforos, com um
pé na embraiagem e outro no acelerador. Parar por obrigação – eles não querem
que pensemos que temos outra opção. Caso contrário, não paremos. Não paremos
porque estamos com pressa. Não paremos porque ainda nos resta tanto para fazer.
Não paremos porque ainda temos uns quantos programas de televisão para ver. Não
paremos porque é hora de dormir. Não paremos porque, definitivamente, o dia de
paragem já nos está reservado. O lema é, realmente, esse: não parar.
Já
os velhos pararam. Já os velhos perceberam que de nada vale correr. Já os
velhos perceberam que correr é morrer. E eu? Ora, eu, sempre que tiver tempo,
quero chegar a velha.