Desprezo pela Normalidade Anormal

     Reúnem-se, no adro da igreja, sete dias depois de o morto ter chorado, pela última vez, por todas aquelas pessoas que, com melhor sorte, cá ficaram para o ver partir.
     Há quem dê, pela primeira vez, as condolências à família. Outros partilham uma conversa trivial de fim de expediente, como se de um qualquer café da cidade se tratasse. Eu, que os observo de longe, penso que infeliz reunião é aquela que, sem a presença do morto, parece ter um estranho enquadramento de normalidade. Que normalidade é esta que faz com que as pessoas se encaixem quando uma das peças do puzzle se perde?
     Imagine-se só a viúva, que nem está com má cara. Calculo que o morto antes de o ser, já o era. Arrisco-me a dizer que todos nós, antes de o sermos, já o somos.
     Que estranha gente é esta, que vê numa missa de sétimo dia uma boa oportunidade para pôr a conversa em dia? E do morto, alguém se lembrou? Deve ter chorado… Eu tê-lo-ia feito. Eu faço-o! Não pelo morto, que pouco me dizia, mas pela morta que hoje sou e ainda ontem fui.
     Sinto-me invisível por, tal como por ele, ninguém me chorar. Presa num caixão, que contrariamente ao dele não é de madeira, passo dias, que mais parecem dias de eternidade, sem que alguém me sinta a presença. Mexo-me, ele não. Que sorte, esta que tenho! Sou uma morta em movimento…
     Quantas são as vezes que me pergunto como será o meu sétimo dia? Preferia que não se juntassem num adro frio e deserto, que só a época do ano poderá contrariar. Um espectáculo de dança, um recital de poesia ou até um concerto de música seria o lugar perfeito! Não dou certezas, mas talvez assim se lembrassem de mim…
     Será que irá juntar-se muita gente nessa tertúlia de fim de tarde? Espero, sinceramente, que não. Nesse dia serei uma morta paralisada, não os poderei acompanhar nem, sequer, rir com eles. Não ficarão na História por isso… Certamente, não na minha.
     No meio de todas as incertezas, sobre o dia que se irão juntar para que eu os possa chorar, tenho uma certeza: não quero que deixem flores em cima da pedra gélida que me irá cobrir. Peço apenas que me dêem música… “Quando morrer quero que ponham uma caixa de música sobre a minha campa.” – escrevo eu, por toda a parte, na esperança que alguém nesse dia se lembre. No mínimo será original. Nunca vi. E, além disso, terá mais a ver comigo, que sempre pautei a minha vida como sendo uma morta muito única e original, ou assim sempre fiz questão de pensar, abusando da minha falta de cultura sobre os que me rodeiam.
     Olham-me, timidamente, do lado de fora, como se de um ser estranho eu me tratasse, apenas e só, por não ser capaz de fazer parte daquela normalidade bem-intencionada. Sinto nojo. Que mais posso dizer? (…). Não será por mim que se irá alterar a ordem dos seus universos.
     Acaba o ritual. Beijo para cá, cumprimento de mão para lá, cumprimentos em jeito de despedida. Sem uma ordem definida, um a um vão-se dirigindo para os seus mundos. Reunir-se-ão no próximo sétimo dia, o dia em que se restabelecerá, mais uma vez, a normalidade anormal.